... Em sentimentos que envolvem o universo feminino, pois “Não se nasce mulher: torna-se.” (Simone de Beauvoir)
A dualidade de sentimentos que envolvem o Universo Feminino.

São tantos os sentimentos em busca da identidade feminina, cujos contratempos das emoções transbordadas vão do êxtase secreto à cólera explícita...

Esse blog é um espaço aberto acerca de relatos e desabafos relativos as alegrias e tristezas, felicidades e angústias... Sempre objetivando a solidariedade e ajuda ao próximo.

sábado, 30 de abril de 2011

Outros olhares...

"Amar é dar o que não se tem para alguém que não quer” Lacan


Já era noite e o vazio da solidão me inquietava. Da janela do nono andar do edifício entra uma brisa suave e morna que me chama para fora. Visto-me simplesmente, um gasto jeans e uma mera camiseta, são o bastante para uma caminhada ao bar e entorpecer o vazio e driblar a solidão.

No bar de costume, repleto de pessoas inquietantes em busca de companhia, o burburinho me soa como um mantra indiano. Encontro alguns amigos e peço minha bebida favorita, quando subitamente cruzo o olhar a um rosto conhecido que me fixa profundamente e lanço um curto cumprimento distante.

No sorver do álcool vem àquela vontade da nicotina. Dirijo-me à calçada para fumar e sou abordada timidamente por Antonio, que apesar de me observar atentamente consegue o momento da aproximação.

Após as perguntinhas básicas..., nos lançamos numa conversa profunda que sutilmente fez-me refém dos assuntos mais interessantes, teologia, filosofia, antropologia... até chegarmos à psicanálise e as teses existencialistas que adentram nos sentimentos.

Possuidor de uma cultura invejável e muito inteligente, tantas foram as afinidades que me encantei por seu olhar fixo que penetrava no meu âmago. As horas passaram rápidas, até demais, que fechamos o bar e o dia estava prestes a raiar.

O contato se manteve diário por telefonemas e as mensagens carinhosas perduraram na semana. Outros encontros subseqüentes e enfim, estávamos flertando feito dois adolescentes, cantando pelas ruas nas madrugadas, risos e gargalhadas ecoavam ao céu aberto.

Eram tantos assuntos, que minha humilde cultura não acompanhava as vastas informações. Antonio, além de muito intelectualizado, era belo e tinha um ar jovial, apesar dos cinqüenta anos bem vividos. Delicadeza seria a melhor palavra para defini-lo. Foram alguns meses muito agradáveis, apenas em trocas platônicas, em que nos desnudávamos inconscientemente em contatos oníricos.

Todas as manhãs ouvia o bip anunciando as mensagens carinhosas ao celular. Aquilo era fundamental para iluminar meu dia. Só que quem ama demanda ser amado, então Antonio dava aquilo que não tinha para dar à mim que não queria. Por mais que definíssemos o amor e a paixão, o fantasma de José me atormentava, impedindo-me à entrega.

A Solidão me levou ao envelhecimento precoce...

"Certo dia, já na minha velhice, um homem se aproximou de mim no saguão de um lugar público. Apresentou-se e disse: "Eu a conheço há muito, muito tempo. Todos dizem que era bela quando jovem, vim dizer-lhe que para mim é mais bela hoje do que em sua juventude, que eu gostava menos de seu rosto de moça do que desse de hoje, devastado".

Penso freqüentemente nessa imagem que só eu ainda vejo e sobre a qual jamais falei a alguém. Está sempre lá no mesmo silêncio, maravilhosa. É entre todas a que me faz gostar de mim, na qual me reconheço, a que me encanta.

Muito cedo na minha vida ficou tarde demais. Quando eu tinha dezoito anos já era tarde demais. Entre dezoito e vinte e cinco meu rosto tomou uma direção imprevista. Aos dezoito anos envelheci. Não sei se é assim com todos, nunca perguntei. Creio que alguém já me falou dessa investida do tempo que nos acomete às vezes na primeira juventude, nos anos mais festejados da vida. Esse envelhecimento foi brutal.


A história da minha vida não existe. Ela não existe. Jamais tem um centro. Nem caminho, nem trilha. Há vastos espaços onde se diria haver alguém, mas não é verdade, não havia ninguém. A história de uma pequena parte da minha juventude, já a escrevi mais ou menos, quero dizer, já contei alguma coisa sobre ela, falo aqui daquela mesma parte, a parte da travessia do rio. O que faço agora é diferente, e parecido. Antes, falei dos períodos claros, dos que estavam esclarecidos. Aqui falo dos períodos secretos dessa mesma juventude, das coisas que ocultei sobre certos fatos, certos sentimentos, certos acontecimentos. Comecei a escrever num ambiente que me obrigava ao pudor.

Escrever, para eles, era ainda moral. Hoje, muitas vezes escrever pode parecer não significar nada. Por vezes sei disto: a partir do momento em que não for, confundidas todas as coisas, ir ao sabor da vaidade e do vento, escrever é nada. A partir do momento em que não for, sempre, todas as coisas confundidas numa única por essência inqualificável, escrever é nada mais que publicidade. Mas na maioria das vezes não tenho opinião sobre isso, vejo que todos os campos estão abertos, que não haverá mais muros, que a palavra escrita não saberá mais onde se esconder, se fazer, ser lida, que sua inconveniência fundamental não será mais respeitada, mas nem penso mais nisso. "
Marguerite Duras, in O Amante.

Melancolia


“Esse desconhecimento ocorre até mesmo quando a perda desencadeadora da melancolia é conhecida, pois, se o doente sabe quem ele perdeu, não sabe dizer o que se perdeu com o desaparecimento desse objeto amado. Isto, portanto, nos leva a relacionar a melancolia com uma perda de objeto que escapa à consciência, diferentemente do processo de luto, no qual tal perda não é em nada inconsciente.” 
Freud, in Luto e Melancolia

A dor do amor perdido...




"Sendo dependentes do objeto de amor escolhido,... nós nos expomos à mais forte das dores se somos desprezados por ele ou se perdemos por motivo de infidelidade ou de morte." Freud, in Luto e Melancolia






Carlos ao me deixar por Camila, seguiu em viagem... Chorei por todos os anos em que quase nunca tive esse privilégio. Era um misto de raiva e ódio, tanta dedicação com privações, justamente das viagens que sempre almejei e ele nunca me proporcionara.

Os meses foram passando e Carlos não havia buscado seus pertences, seu guarda-roupa estava intacto, apenas com ausência de poucas peças, na sala os porta-retratos ainda permaneciam com suas imagens. A cada objeto me remetia a sua lembrança e a dor de sua deslealdade.

Da cólera das discussões na sua partida, restou-me a melancolia numa dor que me rasgava o peito. Era impossível imaginar que ele não havia sido somente infiel, fora desleal.

Logo, com Camila, que era desprovida de respeito ao próximo, embora se fizesse de santa. Tinha fortes traços de transtorno de personalidade, fria, sem afeto e principalmente sem qualquer sentimento de culpa, se utilizava das mais baixas armas. Perante Carlos, se portava de compreensiva, amável, equilibrada, segura e principalmente disposta a ser sua escrava sexual em todos os sentidos. Mas, na busca incessante em tirá-lo de casa a todo custo, não mediu nenhum princípio ético ou moral, usou todas as formas e maneiras para que eu tomasse ciência do caso extraconjugal, tripudiou meus sentimentos com ligações anônimas, me injuriou gratuitamente mesmo após a saída de Carlos do lar.

Obviamente, se sentia insegura em relação à mim, por ser bem mais velha e feia. Portanto, não mediu esforços em alimentar seu narcisismo patológico.

Já não suportava mais o fantasma de Carlos, juntei todas as suas coisas e ele partiu. Deixando um vazio que me levou ao sofrimento e angústia culminando numa depressão capaz de me tirar do mundo externo.

quarta-feira, 27 de abril de 2011

A Idade da Discrição



"Meu relógio parou? Não. Mas os ponteiros parecem não andar.
Não olhar para eles...
Pensar em outra coisa, em qualquer coisa: nesse dia que passou, tranqüilo e rotineiro apesar da agitação da espera.
Enternecimento do acordar...
André estava enrodilhado no leito, olhos vendados, mãos postas contra a parede num gesto infantil, como se no desamparo do sono tivesse necessitado experimentar a solidez do mundo.
Sentei-me à borda do leito, coloquei a mão sobre seu ombro.
Tirou a venda dos olhos, um sorriso desenhou-se em seu rosto espantado.

- São oito horas!

Coloquei na biblioteca a bandeja da primeira refeição. Peguei um livro recebido na véspera e já folheado pela metade. Cacetes todas essas lengalengas sobre a não-comunicação! Bem ou mal conseguimos nos comunicar, se o queremos. Não com todo o mundo, é claro, mas com duas ou três pessoas. Às vezes, acontece-me não falar a André sobre estados de ânimo, pequenos cuidados, tristezas. Sem dúvida, ele também tem seus segredinhos, mas grosso modo não ignoramos nada um do outro. Derramei nas xícaras chá-da-china bem quente, bem escuro. Bebemos enquanto percorríamos a correspondência: o sol de julho entrava em caudais no aposento. Quantas vezes ficamos sentados junto à mesinha, em frente um do outro e diante de xícaras de chá bem escuro e bem quente? Será assim, em seguida, em um ano, em dez anos?... Este instante possuía a doçura de uma lembrança e a alegria de uma promessa. Teríamos trinta ou sessenta anos? Os cabelos de André branquearam cedo; antigamente, aquilo parecia faceirice de sua parte: a neve realçando a frescura de sua tez. É ainda faceirice. A pele endureceu e fendeu-se, gretada como couro velho, mas o sorriso da boca e dos olhos guardou sua luz. Apesar dos desmentidos do álbum de fotografias, sua jovem figura se curva ante seu rosto de hoje: meu olhar não lhe reconhece idade. Uma longa vida com risos, lágrimas, cóleras, abraços, confissões, silêncios, impulsos, e parece, às vezes, que o tempo não passou. O futuro se esconde, ainda até o infinito. Levantou-se:

- Bom trabalho! - me disse.

- Para você também: bom trabalho."


Simone de Beauvoir, in A Mulher Desiludida

A presença ausente...


"Nesse ponto, contudo, quando a fachada do casamento feliz se desintegra, a amante fica perturbada e, por compaixão pela esposa abandonada, evita se encontrar com seu amante" Slavoj Zizek, in Como Ler Lacan

Ao toque da campainha abri a porta e apareceu Gustavo para minha surpresa. Estava com a aparência de cansado e, ao entrar percebi o quanto estava acabado e envelhecido em poucos meses, o que levaria anos.


Trajando vestimentas deselegantes, totalmente diverso ao seu estilo. No cumprimento frio de dois breves beijos laterais pude sentir o odor mofado da outra. Gustavo não tinha mais o seu cheiro fresco e adocicado, do qual o tornava sedutor. Agora, tornara-se um homem sem o menor atrativo, apagado.

Ao adentrar acanhado parecia-me um estranho, como se nunca tivesse pertencido à nossa casa, na qual compartilhamos muitos momentos juntos. De certo, abrira mão da família, em troca da nova vida inventada por àquela que o tirou do lar.

Não havia mais emoção em seus olhos e tampouco, brilho algum. Eis que, se mostravam opacos e sem o meu reflexo. Nos seus ombros trazia o peso da culpa de tanto sofrimento causado sem o pudor pela fantasia que o levara de mim.

Por um instante, num delírio, pareceu-me arrependido sem coragem de voltar atrás e resgatar nossos anos vividos. Mas, logo, ao despertar percebi que ele não era mais o meu amado. Àquele que um dia trouxe-me a completude e, agora me deixara vazia.

Não obstante, Gustavo também pagara o preço amargo da ausência imposta às datas festivas comemoradas em família. Ficando solitário e esquecido num quarto e sala sem desfrutar dos brindes natalinos.

Sou várias em uma... Mulher

Serei a Mulher Revoltada de Camus ?
A Mulher Desiludida de Beauvoir ?
A Mulher Libertária de Sartre ?
A Mulher Solitária de Lispector ?
A Mulher Perigosa de Nietzsche ?
A Mulher Alienada de Schopenhauer ?
A Mulher Madalena de Cristo ?
A Mulher Esquecida de Platão ?
Ou, a Mulher Oprimida de Marx ?



Sou a Mulher Angustiada !!!
Porque as tenho todas em mim...




Claudine Garcy

terça-feira, 26 de abril de 2011

E, Ele se foi...



Já se vão anos, longos anos compartilhados com José, desde momentos felizes a algumas crises contornadas pelo seu ciúme infundado e diversas cobranças. Bem mais velho e experiente, com o passar do tempo essa diferença de idade passou a incomodá-lo.

Ultimamente, passou a se ausentar mais em virtude do trabalho indo para o campo e espaçando cada vez mais seu retorno ao nosso lar. Avesso a compartilhar uma vida social e a se permitir viagens de férias, levamos uma vida bem típica pequena burguesa, apenas compartilhando as datas festivas com a família.
Foi quando de repente veio a primeira indagação.

- Querida, você ainda me ama?
Imaginei algum incômodo sentido por insegurança, prontamente respondi:
- Claro que amo, por quê?
- É que não sinto que ainda me ame e não vejo você feliz comigo.
- Deixa de besteira, fique tranqüilo que jamais lhe abandonarei.

A conversa se dispersou e surgiram outros assuntos cotidianos, já que ele não era chegado aos meus interesses literários, políticos ou filosóficos.

José passou a se comportar desconfiado, possessivo e muito ciumento. Entretanto, não havia motivo algum para tamanha insegurança, já que sempre fui honesta e de uma fidelidade canina. Apesar, de não suportar discutir a relação como era de seu feitio.

Um mês após, novamente a preocupação.

- Maria, você pensa em separar de mim?
Mas, o que está acontecendo? Novamente essa insegurança? Pensei.
- José fique tranqüilo não há a menor possibilidade. Afinal, passamos tantas coisas juntos, minha doença, crise financeira e agora que estamos bem não há motivos para esse tipo de questionamento. Por que, você pensa em se separar?
- Não, Maria, jamais abandonaria você.
- Então, esqueça, ficaremos velhinhos rabugentos juntos. Respondi rindo.

Seguimos nossas responsabilidades de trabalho normalmente, inclusive eu estava numa fase boa profissionalmente. Mas, as desconfianças no âmbito emocional se intensificaram. José passou a receber mensagens anônimas alegando que tomasse cuidado comigo porque seus chifres não passariam da porta. Com isso, passou a ter um comportamento irritadiço e agressivo.

Bem próximo ao meu aniversário, cuja data em todos os anos sempre fora comemorada rodeada de amigos, na Páscoa, fomos almoçar num restaurante simples e o pior aconteceu. José queria se separar porque tinha absoluta certeza que eu não o amava mais. A refeição bateu no meu estômago feito uma brasa incandescente. Não pude conter minhas lágrimas e disse:

- Vamos embora, perdi o apetite e estou muito triste.
- Não chora, você não está feliz mesmo ao meu lado. Acho que vai ser melhor para você. Respondeu.
Percorremos o caminho de volta pra casa abraçados, com José me consolando. A dor era forte e havia um nó em minha garganta.

Pensei, isso não está acontecendo, logo agora que estamos bem, tranqüilos, minha vida profissional e financeira estabilizada. Deve ser um blefe como tantas vezes ele fez comigo me ameaçando por insegurança e manipulação.

Conhecia José profundamente, se esta estória de separação é verdade, deve haver outra pessoa entre nós. Depois, do susto fomos conversar.

- José seja sincero você tem outra?
- Claro que não, acho é que você está apaixonada por outro e está infeliz ao meu lado.
- Não tenho ninguém José, pode abrir o jogo quem é ela?
Grosseiramente, respondeu.
- Não tenho ninguém! Só não vejo você feliz ao meu lado.

Com efeito, José tinha um caso e para se justificar da traição depositou toda a culpa nos meus ombros me acusando injustamente de inúmeras situações inverídicas, como uma avestruz que esconde a cabeça sob um buraco deixando o rabo de fora. Afinal, como bem disse Sartre: “O inferno são os outros”.

Não bastou, investiguei e descobri que José tinha uma amante e se envolvera a ponto de se sentir pressionado a sair de casa. Mas, a culpa era minha que não o amava.

O período de separação foi bastante doloroso, José chegou a voltar atrás se dizendo arrependido. Mas, Geni estava sempre se fazendo presente, com intuito claro e notório de tê-lo pra si. Usou de todas as armas possíveis e imaginárias. Passando por cima dos princípios básicos da moral e da ética. Eram telefonemas anônimos, aproximação à pessoas do meu meio social, investigações em que sabia de todos os meus passos e da minha vida.

Adoeci de tristeza, deprimida não conseguia trabalhar, fazer minhas tarefas rotineiras e o pior de tudo, via o sofrimento do meu filho chorando pelos cantos. A família ruiu. Solitária e bastante machucada fui exposta.

Geni é uma mulher bem mais velha, quase como José, sem nenhum atrativo físico, intelectualmente inferior a mim, feia, fútil e sem afeto aos próprios filhos. Mas, costumava colecionar relacionamentos com homens casados e, finalmente triunfou em suas investidas. Pois, José se foi, apesar de vinte anos de relacionamento.

                                                            "Tudo que é sólido se desmancha no ar" Marx

Rito da Vida Compartilhada

"Acredtar - acreditar diretamente, sem mediação - é um fardo opressivo que, felizmente, pode ser descarregado sobre a prática de um ritual.  O mesmo se aplica ao casamento: o pressuposto implícito (ou melhor, a injunção) da ideologia do casamento é que, precisamente, não deve haver amor nele. A fórmula pascaliana do casamento não é, portanto. 'Você não ama seu parceiro? Então case-se com ele, passe pelo ritual da vida compartilhada, e o amor emergirá por si mesmo', mas ao contrário, 'Você ama muito alguém? Então case-se, ritualize sua relação de amor, de modo a curar seu apego apaixonado e substituí-lo por enfadonha rotina - e se você não conseguir à tentação da paixão, há sempre casos extraconjugais..." (Slavoj Zizek, in Como Ler Lacan)


segunda-feira, 25 de abril de 2011

O SER E O NADA


"Esta noção de “propriedade”, pela qual tão comumente se explica o amor, não poderia ser primordial, com efeito. Por que iria eu querer apropriar-me do outro não precisamente na medida em que o Outro faz-me ser? Mas isso comporta justamente certo modo de apropriação: é da liberdade do outro enquanto tal que queremos nos apoderar. E não por vontade de poder: o tirano escarnece o amor, contenta-se com o medo. Se busca o amor de seus súditos, é por razões políticas, e, se encontra um meio mais econômico de subjugá-los, adota-o imediatamente. Ao contrário, aquele que quer ser amado não deseja a servidão do amado. Não quer converter-se em objeto de uma paixão transbordante e mecânica. Não quer possuir um automatismo, e, se pretendemos humilhá-lo, basta descrever-lhe a paixão do amado como sendo o resultado de um determinismo psicológico: o amante sentir-se-á desvalorizado em seu amor e em seu ser. Se Tristão e Isolda ficam apaixonados por ingerir uma poção do amor, tornam-se menos Interessantes, e chega até a ocorrer o fato de que a total servidão do ser amado venha a matar o amor do amante. A meta foi ultrapassada: o amante sente-se só, caso o amado tenha se transformado em autômato. Assim, o amante não deseja possuir o amado como se possui uma coisa; exige um tipo especial de apropriação. Quer possuir uma liberdade enquanto liberdade. Mas, por outro lado, o amante não poderia satisfazer-se com esta forma eminente de liberdade que é o compromisso livre e voluntário. Quem iria contentar-se com um amor que se desse como pura fidelidade juramentada? Quem iria satisfazer-se se lhe dissessem: "Eu te amo porque me comprometi livremente a te amar e não quero me desdizer; eu te amo por fidelidade a mim mesmo?”Assim, o amante requer o juramento, e o juramento o exaspera.

Quer ser amado por uma liberdade, e exige que tal liberdade, como liberdade, não seja mais livre. Quer, ao mesmo tempo, que a liberdade do Outro se determine a si própria a converter-se em amor - e isso, não apenas no começo do romance, mas a cada instante - e que esta liberdade seja subjugada por ela mesma, reverta-se sobre si própria, como na loucura, como no sonho, para querer seu cativeiro. E este cativeiro deve ser abdicação livre e, ao mesmo tempo, acorrentada em nossas mãos. No amor não é o determinismo passional que desejamos no outro, nem uma liberdade fora de alcance, mas sim uma liberdade que desempenhe o papel de determinismo passional e fique aprisionada a esse papel. E, para si mesmo, o amante não exige ser a causa, mas sim a ocasião única e privilegiada desta modificação radical da liberdade.

No Amor, o amante quer ser "o mundo inteiro" para o amado: significa que se coloca do lado do mundo; é ele que resume e simboliza o mundo, é um isto que encerra todos os outros "istos"; é e aceita ser objeto. Mas, por outro lado, quer ser o objeto no qual a liberdade do outro aceita perderse, o objeto no qual o outro aceita encontrar, como sua segunda facticidade, o seu ser e sua razão de ser; quer ser o objeto-limite da transcendência, aquele rumo ao qual a transcendência do Outro transcende todos os outros objetos, mas ao qual não pode de modo algum transcender. E, por toda parte, o amante deseja o círculo da liberdade do Outro: ou seja, deseja que, a cada instante, no ato pelo qual a liberdade do Outro aceita este limite à sua transcendência, tal aceitação esteja já presente como móvel de aceitação considerada. É a título de meta já escolhida que o amante quer se escolhido como meta. "... ..."Ao mesmo tempo, se o amado pode nos amar, está prestes a ser assimilado por nossa liberdade: porque esse ser-amado que cobiçamos já é a prova ontológica aplicada a nosso ser-para-outro. Nossa essência objetiva implica a existência do Outro, e reciprocamente, é a liberdade do outro que fundamenta nossa essência. “Se pudéssemos interiorizar todo o sistema, seríamos nosso próprio fundamento”. (Jean-Paul Sartre in O Ser e o Nada).

Ousar... !!!





"Casamento?
Não, não para mim!
Oh! Talvez um casamento de meio-expediente; isso poderia servir-me, mas nada que me prendesse demais." Lou Salomé (Irvin Yalom in Quando Nietzsche Chorou)













 

"Ouse, ouse... ouse tudo!!!
Não tenha necessidade de nada!
Não tente adequar sua vida a modelos.
Nem queira você mesmo ser um modelo para ninguém.
Acredite: a vida lhe dará poucos presentes.
Se você quer uma vida, aprenda ... a roubá-la!
Ouse, ouse tudo! Seja na vida o que você é, aconteça o que acontecer.
Não defenda nenhum princípio, mas algo bem mais maravilhoso: algo que está em nós e que queima como o fogo da vida!!!" Lou Salome (Irvin Yalom in Quando Nietzsche Chorou)

domingo, 24 de abril de 2011

A Mulher Desiludida

"Aconteceu. Aconteceu logo a mim.   


Pois bem, sim! Isto me aconteceu. É normal. Devo persuadir-me e jugular essa cólera que me sacudiu durante o dia inteiro, ontem. Maurice me mentiu, sim. Isto também é normal. Poderia prosseguir, em vez de me falar. Mesmo tardiamente, devo ser-lhe grata pela franqueza. 

Sábado, eu acabei por adormecer. De vez em quando estendia a mão para o leito gêmeo. a coberta estava estendida. (Gosto de adormecer antes dele, enquanto trabalha em seu gabinete. Através dos sonhos escuto escorrer a água, sinto um ligeiro odor de água-de-colônia, estendo a mão, seu corpo incha as cobertas e mergulho em beatitude.) A porta de entrada bateu violentamente. 

Eu gritei: "Maurice!" eram três horas da manhã. Eles não estiveram trabalhando até três horas. Beberam e conversaram. Eu me levantei da cama:
— a que horas chegou? De onde vem?
Ele sentou-se numa poltrona. Tinha na mão um copo de uísque.
— são três horas, eu sei.
— Colette está doente, eu morro de apreensão e você chega em casa às três horas. Você não trabalhou até três horas.
— Colette piorou? 

Ergueu os ombros. Evidentemente. Eu conhecia sua resposta: bonita, brilhante, atraente. O tipo da aventura inconseqüente e que lisonjeia um homem. Tinha necessidade de lisonjas?

Sorriu-me:
— estou contente por ter-me interrogado. Detestava ter de mentir.
— desde quando você me mente?

Ele hesitou, apenas:
— eu lhe menti em Mougins. E depois de minha volta.
Fazia cinco semanas. Pensaria em Mougins?
— deitou com ela quando ficou sozinho em paris?
— sim.
— você a vê muito?
— oh! Não! Bem sabe que eu trabalho...

Pedi detalhes. Duas noites e uma tarde depois de sua volta, eu acho que é demais.
— por que não me contou logo de uma vez?
Olhou-me timidamente e disse com pesar na voz:
— você disse que morreria de desgosto. ..
— isso a gente diz.. .

Subitamente, tive vontade de chorar: o mais triste é que não morrerei. Através de brumas azuis nós olhávamos a áfrica, ao longe, as palavras que pronunciávamos não passavam de palavras... Atirei-me para trás. O golpe me estarrecia. O estupor esvaziava-me a cabeça. "vamos dormir", eu disse. Precisava de um prazo para compreender o que me acontecia.

Bem cedo a cólera me acordou. Como tinha um ar inocente, com os cabelos emaranhados sobre a fronte rejuvenescida pelo sono! (no mês de agosto, durante minha ausência, ela acordara ao lado dele. Eu não podia acreditar! Por que fui com Colette para a serra? Ela não fazia tanta questão e fui eu que insisti.) Mentiu-me durante cinco semanas! "esta noite demos um grande passo adiante." e voltava da casa de Noellie. Tenho vontade de sacudi-lo, de insultá-lo, de gritar. Dominei-me. Deixei um bilhete em meu travesseiro: "até a noite" — certa de que minha ausência o atingiria mais que reprimendas. À ausência não se pode responder. Caminhei ao acaso, nas ruas, obcecada por estas palavras: "ele me enganou!" visualizava imagens: o olhar, o sorriso de Maurice para Noellie. Afastava-as. Ele não a olha como a mim. Eu não queria sofrer, eu não sofreria mas o rancor me sufocava: "ele me enganou!"

— Dizia: "morrerei de tristeza", sim mas era ele que me forçava a dizer. Fora mais ardoroso do que eu na conclusão de nosso pacto: nada de compromisso, nada de licença. Rodávamos pela estrada de Saint-Bertrand-De-Comminges e ele insistia: "eu lhe bastarei a vida inteira?" Irritou-se porque minha resposta pareceu-lhe não muito inflamada (mas que reconciliação no velho albergue, com o perfume das madressilvas entrando pela janela! Foi há vinte anos: era ontem). Ele me bastou, só vivi para ele. Ele, por um capricho, traiu nosso juramento! Dizia a mim mesma: exigirei que rompa, imediatamente... Estive em casa de Colette, ocupei-me com ela o dia inteiro, mas interiormente, eu fervia. Voltei para o apartamento, esgotada. "vou exigir que rompa."

Mas que significa a palavra "exigência" após uma vida inteira de amor e compreensão? Nunca pedi nada que não desejasse também para ele.

Tomou-me em seus braços com um ar um pouco perdido. Tinha telefonado muitas vezes para Colette e ninguém atendera (para que ela não fosse molestada eu desligara a campainha). Estava louco de inquietação.

— de todo o jeito, você não pensava que eu me matasse?
— imaginei tudo.
Sua ansiedade me tocou e eu o escutei sem me tornar hostil.
— está certo, errou em mentir, mas é preciso que eu compreenda; a primeira hesitação arrasta para outras mentiras: não se ousa confessar porque isto implica revelar que se escondeu a verdade. O obstáculo ainda é mais intransponível para pessoas que, como nós, prezam tanto a sinceridade. (eu reconheço: encarniçadamente, eu mentiria para esconder uma mentira.) Nunca a suportei. As primeiras mentiras de Lucienne e Colette me desolaram. Custei a admitir que todas as crianças mentem para suas mães. Não comigo! Não sou nem mãe nem mulher a quem se minta. Orgulho imbecil. Todas as mulheres acreditam-se singulares, todas pensam que determinadas coisas não lhes podem acontecer e todas se enganam. Refleti bastante, hoje. (é uma sorte que Lucienne esteja na América. Teria que representar para ela e ela não me deixaria em paz.) Fui falar com Isabelle. Ela me ajudou como sempre. Tinha medo que não me compreendesse por que ela e Charles exigem liberdade, e não fidelidade, como eu e Maurice.

Mas isso não impediu, me confessou, de ter crises de cóleras contra o marido, nem de se sentir, às vezes, insegura. Faz cinco anos, acreditou que ele ia deixá-la. Aconselhou-me paciência. Ela estima bastante Maurice. Acha natural que ele tenha querido uma aventura, desculpável que me tenha, anteriormente, escondido. Certamente, ele se cansará bem cedo. O que dá sabor a esse gênero de coisas é a novidade. O tempo trabalha contra Noellie. O prestígio que possa ter aos olhos de Maurice se desvanecerá. Apenas, se quero que nosso amor saia indene dessa prova, é necessário que não represente de vítima nem de megera. "seja compreensiva e alegre, sobretudo seja amiga" — disse. Foi assim que, finalmente, ela reconquistou Charles. A paciência não e minha virtude principal. Mas devo esforçar-me. E não somente por tática mas por ética. Tive, exatamente, a vida que desejei: devo merecer esse privilégio. Se baqueio no primeiro golpe, tudo o que penso de mim é ilusório. Puxei por papai: sou intransigente. Maurice estima que assim seja, mas contudo, devo adaptar-me e compreender os outros. Isabelle tem razão: é normal que um homem tenha uma aventura após vinte e dois anos de casado. Se não o admitisse, eu é que seria anormal — infantil, em suma.

Deixando Isabelle, não tinha nenhuma vontade de ver Marguerite. Ela me escrevera uma cartinha comovente, não poderia decepcioná-la. Tristeza desse salão de visitas, desses rostos de adolescentes oprimidas! Mostrou-me desenhos nada maus. Gostaria de fazer decorações ou, no mínimo, ser vendedora ambulante. Trabalhar, em todo o caso. Repeti-lhe as promessas do juiz. Falei-lhe das diligências que havia feito para obter a autorização de sair aos domingos com ela. Tem confiança em mim e me estima bastante, será paciente mas não por tempo indefinido. Esta noite saio com Maurice. Conselhos de Isabelle e da correspondência sentimental: para retomar seu marido, seja alegre, elegante, saiam juntos, sozinhos. Não tenho que retomá-lo: não o perdi. Mas tenho ainda muitas perguntas a lhe fazer e a conversa será mais calma se jantarmos fora. Não quero, sobretudo, que pareça uma prestação de contas.

Um detalhe bobo me aborrece: por que ele tinha um copo de uísque na mão? Eu chamei: Maurice! Estando acordada às três da manhã, adivinhou que eu ia interrogá-lo. De ordinário, não bate com tanto estrondo a porta de entrada."

Simone de Beauvoir, in A Mulher Desiludida